Corra! - Simbolismos, Sátira e Terror Social
O filme de Jordan Peele Corra!, é mais do que um filme de terror. A história da visita de um homem negro aos pais de sua namorada branca que dá totalmente errado também é uma sátira que captura algo no zeitgeist. Por essa razão, é um descendente de outros dois clássicos do horror: O Bebê de Rosemary (1968) e especialmente Mulheres Perfeitas (1975), ambas adaptações de romances de Ira Levin. Porém enquanto esses filmes usam analogias assustadoras para dramatizar questões da liberação das mulheres, Corra! aborda habilmente o clima atual em relação ao racismo.



Atenção: Spoilers!
Corra! é carregado de símbolos e imagens que nos lembra a história da escravidão e do sul antigo dos EUA. Começando com a propriedade que se assemelha a um casarão colonial, ou mesmo alguns dos figurinos que parecem mais velhos -- os ecos visuais nos lembram que nosso passado está sempre entrelaçado em nosso presente.
O primeiro sinal de que algo está errado é quando um veado é atropelado. O cervo está ligado ao nosso protagonista. O acidente é um presságio sobre o que está por vir: o sacrifício da criatura inocente. O presságio mais tarde é cumprido quando depois de ter sido amarrado pela família de Rose, Chris vê a cabeça de um cervo montado na parede -- um troféu morto que a família gostaria de fazer dele também.
Quando a mãe de Rose hipnotiza Chris, utiliza como arma uma xícara de chá. A cerâmica delicada e os redemoinhos são símbolos de civilidade, revelados hostis e agressivos. Misturar o chá nos atinge como uma atividade refinada e inofensiva, mas os conflitos globais e as dinâmicas coloniais foram por muito tempo ligados ao comércio e consumo de chá. O Boston Tea Party (1773) ajudou a lançar a guerra revolucionária americana, por exemplo.
A hipnose dá a Chris a sensação de queda. As imagens sugerem o motivo oculto da família: empurrá-lo para baixo e suprimir sua vontade. Dentro do enredo, o "lugar afundado" é um estado de consciência visceral esmaecido, mas também é evocativo de resistência contra o progresso. Quando Chris tem seus olhos fechados, associamos à remoção de sua consciência e nos faz pensar na privação histórica de educação para destituir e oprimir a população negra.
O pai de Rose, Dean, faz um leilão com a foto de Chris, que nos remete de forma perturbadora a um leilão de escravos. A revelação de que essas pessoas brancas estão assumindo os corpos de negros é uma clara alusão à escravidão, em que brancos mantinham todo o poder e usavam pessoas negras como instrumento de trabalho manual e de enriquecimento.
Depois de ser informado sobre como seu corpo será submetido cirurgicamente em benefício do homem que o comprou no leilão, Chris olha para o algodão saindo da cadeira e o utiliza para tapar as orelhas e resistir à hipnose. É uma referência visual à principal forma de trabalho escravo do velho Sul norte-americano, a colheita de algodão. O símbolo da escravidão portanto, é invertido e se tornar sua ferramenta de fuga, não muito diferente dos chifres do veado, que Chris utiliza para empalar o sogro.
O filme também apresenta imagens a respeito de cinema e audiência: a preparação da cirurgia mostra luzes brilhantes olhando para câmera, como nos sets de filmagem. Além disso, Hudson quer pegar os olhos de Chris, que simbolizam, através da sua fotografia, parte fundamental da sua identidade -- ele é um indivíduo pró-ativo. É significativo também que Hudson seja um comerciante de arte, que vende seu gosto artístico, mas sem realmente poder ver a arte. Ele portanto lucrará ao se apropriar da visão artística de Chris e como consequência, torná-lo em audiência passiva.
O diretor Jordan Peele está sugerindo que o consumo de entretenimento pode ser passivo ou hipnótico se permitimos que nossas mentes sejam controladas por quaisquer imagens que nos alimentem. Mas o flash da câmera nos desperta, como o hipnotizado Logan, cujo verdadeiro nome é Andre -- ou mais tarde Walter, que há muito foi assumido pelo avô de Rose. Peele pretende que seu filme seja como o flash, não um entretenimento hipnótico que nos embala numa submissão, mas uma sacudida que nos leva à realidade.
Enquanto a trama eventualmente se intensifica em uma guerra de raças, a sátira de Corra! não é realmente direcionada ao racismo abertamente evidente em nossa sociedade. Muitos até interpretam o filme como um comentário sobre certa mentalidade liberal branca -- a família de Rose parece no início ser gente do bem, que acredita em seus ideais modernos. No entanto, sua tolerância é forçada e sua visão de mundo pode ser cega e auto-congratulatória. Em última análise, eles não estão interessados em qualquer compreensão profunda da desigualdade ou de qualquer ação significativa.
Logo no início do filme temos alguns indícios do que está por vir, em pequenos os comentários. Jeremy, associado com o seu significante branco, o bastão de lacrosse, dá vazão ao seu ódio quando toca no assunto de genética durante o jantar. Mais tarde, a obsessão racista com a força física dos negros, comparando-os a animais, torna-se ainda mais explícita.
O filme também sugere a forma como a cultura negra pode entrar e sair de moda e ser cooptada pela sociedade branca quando Chris pergunta:
E, através do personagem do hipnotizado Andre, releva-se a pressão sobre a sociedade negra de classe média e alta para assimilar a cultura branca.
A família de Rose tentar vender o corpo Chris simboliza uma realidade mais sutil -- um mundo em que as pessoas brancas ainda são felizes de poderem se beneficiar do seu privilégio, e suas idéias liberais são limitadas por um apego ao status quo que os torna a classe dominante.
Tanto Mulheres Perfeitas como O Bebê de Rosemary podem ser igualmente lidos figurativamente, como comentários sobre como a sociedade aprisiona as mulheres. Na vida real, esposas suburbanas não são transformadas em robôs, nem mulheres urbanas não são impregnadas pelo Satanás. Mas em Mulheres Perfeitas, a comunidade força as mulheres a colocarem a necessidade de sua família em primeiro lugar, transformando-as em donas de casa servis e perfeitas. E em Rosemary, o marido de uma mulher também a utiliza para avançar em uma sociedade perversa e competitiva.
Corra! decorre do movimento Black Lives Matter, da mesma maneira que Mulheres Perfeitas encarna o slogan "sisterhood is powerful" ("sororidade é poderosa"). Chris é de muitas maneiras uma atualização da protagonista de Mulheres Perfeitas, Joanna. Ambos são personagens inteligentes que estão conscientes das questões sociais em pauta -- Chris até admite seu desconforto em saber se os pais de Rose aceitarão seu relacionamento interracial. Portanto, nossa primeira impressão é que ambos são experientes, informados e não aparentemente ingênuos. No entanto, as situações absurdamente sinistras e corruptas eventualmente acabam por provar que a perspectiva liberal dos dois na verdade não é paranóica o suficiente.
Em Mulheres Perfeitas, Joanna acredita estar em um casamento amoroso com um homem que a respeita, e até acreditamos nisso momentaneamente. Porém quando seu marido se cansa de ter que cuidar das crianças e torna-se irritado com o interesse de Joanna pela fotografia, ele decide que o que realmente quer é uma empregada obediente e não uma esposa independente. Esta implicação assustadora é que mesmo os indivíduos bem intencionados não podem resistir às recompensas de uma sociedade desigual que os favoreça: a verdadeira fidelidade de Rose é para sua classe e o privilégio que ela está feliz de desfrutar.
O terror é um gênero inerentemente potente para dramatizar questões sociais, pois eles podem dar uma forma exagerada aos nossos medos intangíveis. A comédia também pode exorcizar nossos demônios falando sobre o que é tabu na sociedade. Corra! não apenas extrai de ambos os gêneros, mas também entrelaça-os -- mesmo os aspectos de terror têm inflexões absurdas de humor sombrio. A ideia bizarra de uma moça que atrai homens negros para que sua família possa transformá-los cirurgicamente em escravos robotizados, bem como o uso métodos inacreditáveis de cirurgia avançada em Mulheres Perfeitas são totalmente irrealistas, utilizados para aumentar a sátira. O absurdo exagerado age como um cavalo de Tróia, que tem em seu interior a crítica política incisiva. Nas três histórias, debilitar o outro assume a forma de invadir e controlar seus corpos. E na nossa sociedade, esse controle não é tipicamente através do seqüestro ou da cirurgia, mas através de meios mais sutis, tais como transformar outros em objetos de desejo ou desprezo.
Muito do humor explícito de Corra! vem do melhor amigo de Chris, Rod. Ele serve de alívio cômico, mas é também o coração do filme, pois é a única pessoa que acredita em Chris. A cena em que a polícia ri de seus medos tem um eco melancólico com a realidade de que casos de pessoas negras desaparecidas são estatisticamente muito mais propensos a não terem solução. Mesmo suas referências engraçadas à segurança do aeroporto se baseiam em uma suposição com ar cômico de que a polícia não se importara em ajudar Chris.
Quando Rose pede ajuda, o público sabe o que está por vir se um policial branco sair do carro, e é exatamente com isso que ela está contando. Peele disse em entrevista que ele originalmente havia planejado para este final mais sombrio, e assim lembrar as pessoas que votaram em Obama de que não vivemos em um mundo sem construção racial. Mas o diretor disse que a indignação com mortes de pessoas negras pelas mãos de policiais o convenceu de que o filme precisava combater a raiva e a dor do público com um final que nos dá um herói e um sentimento positivo quando saímos do cinema.
Quando Rod vem ao resgate de Chris, a comédia e a esperança salvam a história das derrotas que concluem Mulheres Perfeitas e O Bebê de Rosemary. Entretanto, a fuga de Chris não é um final feliz, pois ainda existe uma ameaça: mesmo no progresso existe, sob a superfície, um preconceito e antagonismo persistentes. Depois de Corra!, podemos aprender a ser um pouco menos ingênuos, mais cautelosamente paranóicos e abrir os olhos para nossos próprios preconceitos.
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